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O som de São Paulo.

Resolvi escrever sobre algo que nunca havia pensado; alguma coisa que nos toca e nos leva às viagens pelas saudades da vida, que emociona e traz à tona sentimentos guardados, que eleva a felicidade e muda nosso estado de espírito: a música.
Para facilitar, vamos dividir este texto em dois períodos: no primeiro, tentamos entender a música como sendo parte fundamental do patrimônio artístico e cultural de um povo (e de um destino turístico), que atrai demanda e comove os visitantes, vinculando o visitante ao visitado.


No segundo, narro meu episódio musical na cidade de São Paulo que, muito embora fugisse da música tradicional brasileira, me surpreendeu positivamente e agregou valor à minha experiência urbana.

 

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A música e as viagens
A música p'ra mim tem seduções de oceano!
Quantas vezes procuro navegar,
Sobre um dorso brumoso, a vela a todo o pano,
Minha pálida estrela a demandar!

 

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Se pensarmos conforme a ideia de Charles Baudelaire, viajante nato e autor desse poema, podemos compreender a essência de seus sentimentos e a intensidade de suas palavras. Sim, a música se apresenta, ordinariamente, como a forma mais representativa da manifestação de um povo e pode seduzir-nos como um oceano. Em grande parte das vezes é reconhecida por fazer parte de uma época importante da vida e da história; seja pessoal, de uma sociedade ou de uma nação.

A música é, sem dúvidas, a mais frequente forma de representação. De acordo à Convenção da UNESCO (2003), pode ser observada em todas as sociedades, nos mais diversos modelos: profana ou sagrada, clássica ou popular, associada ao trabalho, ao entretenimento, à política e à economia, ao passado de um povo – ou pode celebrar personagens famosos ou acompanhar e facilitar transações comerciais.

– ‘Pensando assim, quantas responsabilidades a música tem!’, refleti eu.

Até aí, nada de muitas novidades. E o Turismo, o que tem a ver com isso? Em primeiro, consideremos que uma viagem pode ser motivada pelo desfrute de traços e elementos distintos – espirituais, materiais, intelectuais e afetivos – que caracterizam uma sociedade ou um grupo social de determinado destino de viagem.

Assim, dentro da realidade turística, toda riqueza patrimonial (a música, por exemplo) de um destino ou comunidade é reconhecida como recurso turístico cultural. ‘E como transformar esse recurso turístico em produto turístico?’ – pensei eu. E a literatura me esclareceu: quando integramos os recursos e adicionamos a eles os serviços turísticos.
E o que acontece quando aglutinamos todos os recursos turísticos e somamos a eles os serviços, criando os produtos turísticos? A resposta é simples: o mercado radica-se na possibilidade de oferecer uma interpretação que facilite a compreensão e fomente o desfrute dos viajantes. Em outras palavras, permite-se assim que o visitante interprete melhor o destino e aproveite-o com mais intensidade. – ‘E a música pode fazer esse trabalho de forma brilhante!’, imaginei.

No Brasil temos um exemplo bem clássico. Segundo a EMBRATUR (Empresa Brasileira de Turismo), a principal porta de entrada do turismo estrangeiro é o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. Não sem razão, ele leva um nome muito especial: Tom Jobim. Como forma de homenagem, o pai da Bossa Nova é recordado pelos passageiros que aí desembarcam.

Pensando nisso (na estratégia de aliar o gênero musical mais brasileiro às viagens), foi criado um itinerário, na cidade, no qual os visitantes podem acessar os pontos importantes que marcaram a história desse gênero musical. Conforme nos revela o Jornal de Turismo (2007), o carioca Carlos Roquette, criador dos ‘Itinerários Culturais’, desenvolveu o Roteiro “Rio Bossa Nova”.

– ‘Parabéns ao Carlos, até que enfim alguém pensou num Roteiro justo e coerente à imagem do Brasil no exterior!’.

Outra curiosidade, ainda sobre o solo nacional, é nosso Plano de Marketing Internacional para Divulgação e Promoção do Brasil no Exterior, o qual também evoca esse gênero musical ao carregar o nome de “Aquarela do Brasil”. Faz, naturalmente, referência à poesia musical que obteve sucesso mundial e que tem o mesmo nome. Tal título foi eleito a fim de expressar todo o sentimento que a música traz consigo – e para, de um modo ou outro, associar o Brasil à Bossa.

Saindo do contexto pátrio e seguindo pelo mundo, quando forçamos um pouco a memória, identificamos alguns destinos turísticos com compreensão de imagens de marca formadas em virtude do ritmo musical. Interessante é perceber que associamos a qualidade da música como forma de interpretação do lugar, e logo formamos uma ideia paralela entre a música específica e a destinação.

Prestemos atenção: Viena, capital da Áustria, é associada a Mozart, e, sem dúvidas, os responsáveis pelo turismo deixam claro, nas ruas da cidade, a genialidade e o talento do compositor. – ‘É realmente impossível não associar Viena à música clássica!’, relembrei. Como informação interessante, quando a cidade celebrou os 250 aniversários de Mozart, recordes de turistas foram batidos, sendo esse festejo considerado o maior êxito de afluência de turistas dos anos temáticos no país.

Viajando mais um pouco, a ilha caribenha da Jamaica é reconhecida por seu reggae, o qual é facilmente encontrado nas ruas e nas casas da população nativa. Seguindo a ideia do JTB (Escritório de Turismo da Jamaica), também acontecem diversas celebrações anuais da música, com festivais musicais e artísticos que, todos os anos no verão, atarem milhares de turistas.
No país, tais festivais representam não só uma parte importante da oferta turística jamaicana como também um elemento fundamental da alma e estilo de vida do país, um autêntico ícone da musica reggae.
Percorrendo outras regiões, podemos chegar à cidade norte-americana de Nova Orleans, consagrada pelo Jazz, onde ainda se encontram ícones desse ritmo associados ao destino. Lá, essa tradição musical que a nutre é lendária, mas a música não somente é produto dessa lenda – é como uma expressão artística vital e em constante evolução por suas ruas. Os dados da Organização de Marketing Turístico de Nova Orleans (2007) mostram que o número de visitantes que buscam informação ou são simpatizantes ao ritmo é alto, “cerca de 800.000 ao ano”.

Assim, tendo em conta a ideia de que a música afeta a imagem percebida pelo turista, é possível encontramos ainda uma infinidade de outros exemplos ao redor do mundo: o Tango na Argentina, o Samba e a Bossa Nova no Brasil, a música Celta / Folk na Irlanda, a música country no Texas, a música cigana na Romênia, o Blue Note em Nova York, o Flamenco na Espanha, a Cumbia na Colômbia, o Zydeco e o Cajún na Luisiana, a música torneada de tambores dos países da África, a música Mariachi no México entre muitos outros

– “Uau, realmente a música faz parte da história e identidade de muitos destinos, e fazemos, certamente, questão de presenciá-la quando lá estamos!”.



Por fim, percebamos que durante anos de criação e divulgação dos ritmos musicais pelo próprio povo, seja como forma de manifestação ou como forma comercial, o êxito dos estilos musicais é evidente. É uma característica que, turisticamente pensando, pode definir e diferir um lugar do outro, e, consequentemente, atrair demanda, cantar e encantar.

O som de São Paulo

No Brasil, os sons são muitos. Os gêneros musicais, infindáveis. Nossa alegria e energia são refletidas na música, que celebra a vida e a felicidade. O Samba, facilmente, é o mais divulgado e reconhecido; entretanto, cada região tem sua música específica, originada a partir de muitas imigrações, aculturações, transformações e adaptações.

– ‘E há música na cidade-cinza?’ – perguntei-me. E a auto resposta foi incisiva: ‘Certamente que sim!’. E é justamente ela que coloca um pouco de colorido no cimento, com suas notas e acordes que driblam a típica orquestra da vida apressada e abafam os sons urbanos de buzinas, aviões e tagarelices em geral. Fui surpreendido (motivo pelo qual me determinei escrever esse texto) por três episódios no qual a música invadia as ruas da Paulicéia, em lugares onde o contexto quase não permitia que a melodia chegasse aos meus ouvidos.

Mas assim é Sampa. Cheia de surpresas e musicalidades. O primeiro deles aconteceu no Centro Velho da cidade – que é fantástico. A cada rua, ruela, alameda ou viaduto, décadas exibem seus estilos e tendências referentes à arquitetura e ao pensamento das épocas. A surpresa veio no Largo do Café, envolvido numa atmosfera que combinava Martinelli, Penteado e Matarazzo.

Lá, topei com uma dupla de hispanohablantes que tocava harmoniosamente seu jazz, que encheu o espaço de drama e melodia. Os sujeitos, admiravelmente concentrados, estavam vestidos exatamente como gostamos de ver os músicos alternativos e apaixonados; trajavam boinas, xadrezes, pulseiras, tornozeleiras, anéis e cortes de cabelo de gosto duvidoso. Um estava munido com um oboé; o outro com alguns pratos e tambores colocados de forma conveniente com a intenção de serem percutidos por ele.

Num compasso de Pantera Cor-de-Rosa, fui seduzido pelo som e decidi desacelerar e me acomodar numa esquina em frente a eles, com o cheiro de café fresco que vinha da confeitaria. O encantamento foi tanto que fui dar minha (pequena) contribuição à arte deles, e acabei puxando conversa (como sempre).

Dos poucos minutos que conversamos, me lembro da frase “a nosotros nos importa el intercambio. ¡Música es emoción pura!”. – ‘Nossa’, pensei eu. E assim segui meu caminho, certo de que aqueles lá eram, absolutamente, movidos pela paixão.
Dias após, usando os serviços do metrô, desembarquei na Estação da Luz – que por si só já é um enorme atrativo turístico, com conceitos culturais, artísticos e históricos. Naquele dia, enquanto estava cruzando seus espaços, um som calmo e aconchegante me chegou. – ‘Parece até um piano’, devaneei.

Mas não era fantasia. Havia, de fato, um piano de cauda cravado em meio à Estação, e um hábil pianista dedilhando suas teclas sacava daí uma composição fabulosa. A Luz e seu piano me maravilharam ao misturar o pós-moderno “desembarque pelo lado esquerdo do trem” ao som clássico e tradicional do piano.

Não pude identificar exatamente qual era a música tamanho eram os cochichos dos espectadores que lotavam de elogios aquele autor. Mas isso não importa. O que validou a experiência foi a possibilidade de frear meus largos passos e desviar minha atenção à beleza do som que, normalmente, não estaria ali.

A combinação do piano mais a mistura dos aços torneados que fazem da Estação da Luz um ambiente único singularizou ainda mais aquele lugar. E assim segui meu caminho, certo de que aquele lá era, absolutamente, movido pelo talento.

Por fim, como último causo - mas não menos extraordinário - a emoção veio às 23h45min de uma terça-feira, em Plena Avenida Paulista. Como de praxe, desembarquei naquele ritmo automático, guiado mais pelo cansaço noturno e pela ânsia de chegar à casa que por conhecer de cor o caminho. Eis que, de modo repentino, ouço um som metálico, delicado, suave, calmo, doce profundo e variado, distinto do habitual da Paulista.

Quando me atento um pouco mais enxergo um homem negro, alto e magro, com dread nos cabelos e roupas claras. Tal sujeito portava um lindíssimo saxofone, que reluzia à iluminação pública e contrastava com a cor de sua pele. – ‘Que imagem peculiar!’.
Avizinhei-me. O homem tocava o saxofone com tanta segurança e força que quase pude ver as notas saindo daquele cachimbo. Ele se curvava para frente e para trás, como uma dança muito bem ensaiada na qual o instrumento era seu par. – ‘Inacreditável!’

Sinceramente, também não reparei no título da peça, pois a atração era tanta que mais me atentei às suas habilidades e em perceber aquela experiência que em memorizar os detalhes. Com o estojo aberto em frente a ele, muitos deixavam ali sua contribuição. E assim também o fiz. Aquele artista merecia.

E assim segui meu caminho, certo de que aquele lá era, absolutamente, movido pelo encanto.
Assim, apreendi que o som de São Paulo é criado pela mistura de gentes que aqui aliviam seus receios e imprimem suas paixões. Percebi que é possível encontrar poesias em forma de músicas nas cidades que visitamos, e que o ato de viajar ou andar por aí pode nos aproximar delas. Sempre encontramos sujeitos que são movidos pelas mais diferentes razões, mas, sem dúvidas, todos o fazem com o coração.

Deixemos, então, que as partituras das cidades nos cativem, fazendo de nossas viagens algo melodioso e donas de sons que ecoem para sempre em nossas memórias. Aproveitemos esses tempos de idas e vindas para nos aproximarmos do outro, daquele que toca com a alma e ritma os trajetos da vida.

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