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O turista anestesiado e o turista protagonista.

Dessa vez resolvi inovar. Quando digo inovar me refiro a uma novidade para mim mesmo. Já sentenciei muitíssimas vezes - para alunos e em meus textos - frases do tipo ‘o turista precisa interagir verdadeiramente com o meio’, ou ‘deixemos de lado as preocupações e façamos um Turismo significativo’ e ainda ‘não pratiquemos o Turismo massivo, vamos aprender algo’. Até aí tudo bem, porque proclamamos aquilo em que acreditamos e o que queremos que os outros acreditem.

Mas percebi que eu mesmo estava fazendo uso de um falso moralismo com um quê de demagogia. Quando é que eu havia praticado Turismo com essa profundidade de sentimentos? Acredito que sim, alguma vez já o pratiquei, mas há tempos não o fazia. Era hora, então, de inovar.

Aproveitei o simples fato de viver na cidade de São Paulo (onde as inovações acontecem a todo o momento) para experimentar esse Turismo. O primeiro passo foi o de passar da simples observação e sair do estado de anestesia e me mover ao estado de sensibilização: atentei-me ao entorno. Em alguns poucos segundos imaginei muitas possibilidades; avaliei um pouco e optei, digamos, por três roteiros, a começar pela vista da sacada de meu apartamento - era meu vizinho: o Cemitério da Consolação. Assumo que não sou fã do Necroturismo (sim, esse segmento atrai bastante demanda) muito menos de contos assombrosos do além-mundo, porém, esse era um bom começo.

Na realidade o objetivo deste texto não é o de fazer propaganda de nenhum ponto turístico muito menos o de detalhar as atrações neles encontradas, contudo, para nos situar, o Cemitério da Consolação é um local considerado um ‘museu a céu aberto’, o mais famoso da nação. Já sabia que o que eu ia encontrar lá seria a biografia da cidade e muito da História do Brasil. Com papel e caneta na mão, ainda dentro do Cemitério, escrevi: “aqui, meu inconsciente resistente me faz buscar os túmulos nos quais jazem alguns personagens famosos (como todo turista tradicional que visita La Recoleta ou Père Lachaise faz), talvez para buscar inspiração entre os restos de Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Oswald de Andrade ou de Tarsila do Amaral. Uma vez mais, é o Turismo mediocrizado que tenta me guiar, me obrigando a caçar automaticamente os nomes de família nacionalmente reconhecíveis”.

No entanto, me forcei a lembrar de que estava vivendo o meu Turismo, e ele era inovador! Imediatamente comecei a percorrer as ruas, as quadras e os terrenos buscando a beleza poética da necrópole. Meu Deus, quanta surpresa! Quantas obras-primas, quanta arte, quantos detalhes, quanta magnitude, quanto silêncio! “Imagine quanta história não repousa aqui, em meio à confusão contemporânea ali de fora?” – esse foi meu pensamento. Mesmo ainda achando esse roteiro um tanto funesto, consegui caminhar lentamente, apreciando as representações das despedidas. Não tive vergonha de ser turista, assim como os que ficam neste plano não a tem quando lá choram àqueles que se foram. Foi o meu momento. Senti-me realizado com essa vitória turística pessoal.

Já bem distante do sossego fúnebre, como segunda opção encarei minha companheira famosa, a Avenida Paulista, que não está a mais de 12 minutos a pé de onde moro. Ao pesquisar as possibilidades de Turismo na Paulista descobri algo fantástico: um roteiro em áudio pela Avenida (o qual confirma a tendência de praticar o Turismo com o auxílio das sensações). Esse instrumento (o audio guide) é bem comum na Europa, e trata-se de um guia eletrônico que nos permite uma experiência individualizada. Novidade por aqui, resolvi experimentá-lo. De fato, descobri duas dificuldades: coordenar os sentidos para usufruir do passeio e não me sentir desconcertado em andar fora do ritmo da Avenida.

Essa aventura segura foi guiada por passos marcados e por textos de Fernando Pessoa e Machado de Assis. Parecia-me uma insanidade combiná-los com essa destinação, mas descobri algo em comum: a loucura - esse é um dos temas base das poesias de Assis, e Pessoa também já discorreu sobre ela. Durante o trajeto pela Avenida da loucura corporativa vi história, vi arte, vi verde, vi Rosas. Foi poesia em meio à correria. Foi gravata combinando com Rembrandt. Que loucura!

Por fim, minha última visita foi o Mercado Municipal de São Paulo. Esse já é um velho conhecido, consagrado e de constante presença nos roteiros da cidade. Além de frequentado por turistas, esse atrativo continua sendo de grande utilidade – lá, tanto os adeptos da haute cuisine como os cozinheiros de primeira viagem se esbaldam. Dessa vez, apesar da intenção de ir sozinho para explorar todos os meus sentidos, convidei um amigo que deixaria a visita ainda mais experimental.

E acabei acertando. Tal amigo se atrasou, saímos de casa mais tarde que deveríamos, erramos algumas ruas, estacionamos o carro a muitas quadras de distância, caminhamos feito loucos em meio à multidão de imigrantes chineses com seus ni hao e guanbi e pronto: chegamos ao destino e o que conseguimos aproveitar foram os belos portões fechados e os caminhões de descarga de melões-caipiras trabalhando. Se eu soubesse que 'guanbi' significa alguma coisa do tipo 'fechado', teríamos economizado certo tempo.

À parte da recente anotação de ‘aprender chinês’ no caderno de coisas a fazer, cheguei em casa, retrocedi à memória e percebi que o que eu havia vivido tinha sido muito melhor que o esperado. Na volta, ficamos horas presos no trânsito por conta do feriado prolongado e da chuvinha constante. Atrasei-me para alguns compromissos, fiquei com fome e apertado para ir ao banheiro; resultado: irritação. E então, entendi: isso é São Paulo.

Eu experimentei São Paulo como todo mundo deveria experimentar um dia. Não vejamos isso pelo lado ruim, mas a vida real paulistana é assim – necessita de planejamento. Antes de sair de casa, é preciso planificar, tomar algumas medidas preventivas e munir-se de alguns equipamentos: telefonar e perguntar os horários de atendimento, ter um bom GPS, ter um repertório musical no carro para entreter-se quando o trânsito empaca, ter algo pra comer no porta-luvas e tirar fotos de paisagens inusitadas para divertir-se com quase nada. Não vale a pena irritar-se.

Eu vivenciei a garoa, o trânsito parado, o costume paulistano de viajar desesperadamente nos feriados, as ruas sem orientação óbvia, a impaciência, os atrasos e os vidros fechados do carro que nos põem em nossa bolha individual: enquanto lá fora o que tocava era uma orquestra de buzinas de motos, freadas de ônibus e pneus cantantes, estávamos ouvindo música clássica numa estação de rádio qualquer (que é bem possível ter escolhido esse gênero musical no horário de rush justamente para aliviar os nervos).
O resultado dessa aventura turística acredito poder ser resumido nesta foto. É mais ou menos isso que senti. Aqui, é cultura pra todo lado. É espaço urbano. É arte na selva de pedras. É muita gente, muito tráfego e muito tudo. É foto tirada através do vidro do carro e são pessoas com mala na mão, indo e vindo. É surpresa a todo momento.

Agora, por fim, descobri São Paulo. É um caos direcionado, uma bagunça organizada, uma confusão boa. É isso que faz da cidade um destino pulsante, ou, como diz o slogan turístico oficial da cidade, “é tudo de bom”. O mais importante de tudo isso foi ter a certeza de que quando saímos de casa abertos a aceitar aquilo que é novo, descobrimos positividades onde aparentemente não há. Fui ao Cemitério ver lápides, e encontrei belas artes. Fui à mais famosa Avenida do Brasil descobrir os outros e me descobri: sou péssimo em ordenar de uma vez só o que ouço, vejo e presencio. Fui ao Mercado comer pastel de bacalhau e sanduíche de mortadela e voltei pra casa com fome, como muitos que vivem em aqui ficam quando estão engarrafados. E tudo isso foi ótimo.

Era o momento de viver o protagonista do meu Turismo e de me transformar no performer da ação. Era a ocasião perfeita para me livrar de preconceitos e, de fato, viver aquilo que aplaudo quando vejo. Aproveitando-me das palavras de Daniela Bitencourt, “o turista hoje tem expectativas que vão além da contemplação passiva dos atrativos. Esse novo perfil de turista, ativo e criativo, quer viajar e se sentir um ator importante na construção do destino visitado”. Por isso, o Turismo tem de proporcionar “a oportunidade para que o visitante partilhe o ambiente da comunidade visitada e a cultura local, vivenciando experiências inesquecíveis (...) é um tipo de oferta turística baseada nos conceitos da ‘Sociedade dos Sonhos’ e ‘Economia da Experiência’, em que o principal objetivo é promover vivências únicas e originais aos turistas”.

E qual é a moral (verdadeira) dessa história toda? Precisamos prestar atenção no mundo a nossa volta. Não o digo somente ao praticar Turismo, mas sempre que permitido, para que os pormenores bonitos da vida não passem despercebidos. Soa demagógico, mas é real. É necessário sairmos do estado de neutralidade e irmos mais além. Nesses pequenos passeios que fiz, em alguns momentos, me senti ridículo: sozinho, no Cemitério, com um calhamaço de papéis na mão. No outro, com fones de ouvido e observando, quase tontamente, a loucura da Avenida Paulista e virando a cabeça de um lado ao outro procurando sincronizar o sonoro, o visual e o reflexivo. Ao final, preso no trânsito ouvindo a 5ª Sinfonia em ré menor de algum compositor famoso, executada pela Orquestra Sinfônica de Montreal.

E é isso que acontece. Quando estamos em nosso contexto, não queremos parecer turistas. Temos medo de soarmos cômicos, bobamente deslumbrados e sermos o motivo de comentários. Quando estamos praticando Turismo assumido (nas férias planejadas, nos pacotes, nos destinos diferentes do nosso habitual) esse temor diminui, já que lá podemos ser turistas. Não estou falando de classificações emanadas pela OMT (que mesmo assim, em meu caso, eu ainda seria considerado ‘turista’ em São Paulo), mas de vivermos as opções turístico-culturais que enobrecem nosso ser em nosso próprio entorno, saindo do caos massificador da modernidade.

Admito que é complicado encontrarmos tempo, vontade e espaço no pensamento para nos desligarmos da automatização e apreciarmos as coisas sem compromisso. Também não é fácil viver o Turismo desacompanhado, sem ter alguém com quem compartir as ideias e emoções; entretanto, passear por aí sozinho nos dá mais liberdade de contemplar, de refletir e de interpretar os cenários. Vejo isso como evolução pessoal, uma chance ao autoconhecimento.

Experimentemos combater a indiferença da velocidade cotidiana; tentemos sair da inércia e da anestesia. Vamos protagonizar e não deixar que as coisas fiquem invisíveis. A máxima é velha, mas ainda funciona: são os detalhes que continuam fazendo a diferença.

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